Mikhail Petrovich Kulakov, um dos maiores ativistas pela liberdade religiosa na União Soviética. |
Mikhail Petrovich Kulakov foi um importante missionário cristão e ativista pelos direitos de liberdade civil e religiosa dentro da União Soviética. Suas ações contribuíram para uma melhor relação entre as diversas religiões e o poder soviético. Participou de diversos eventos dentro e fora da URSS, contribuindo para diálogos mais pacíficos entre EUA e URSS em questões importantes como o desarmamento e políticas de paz na corrida nuclear.
Pais e filhos
O pai de Mikhail, pastor adventista, havia sido preso e
sentenciado a uma pena de dez anos de trabalhos forçados em um campo na
República de Komi, a 950 km da cidade de Ivanovo, onde Mikhail havia se formado
em Artes. Mikhail, nascido em 29 de Março de 1927, sua mãe e seus dois irmãos
se mudaram para Daugavpils, na Letônia. Ali, Mikhail lecionou Artes para turmas
do ensino fundamental e do ensino médio durante alguns meses no ano de 1948.
Mas sua liberdade duraria pouco.
Stephen
O irmão mais velho de Mikhail, Stephen, que havia servido em
uma unidade de engenharia na linha de frente durante a Segunda Guerra Mundial, também
havia sido preso e sentenciado a trabalhos forçados. Entre as diversas
justificativas inconsistentes, um dos motivos para a prisão era a possível ação
dupla de Stephen durante a guerra. Ele havia sido capturado pelos alemães, mas
conseguiu escapar e retornar ao seu regimento. As autoridades soviéticas
comumente prendiam soldados que eram capturados e conseguiam fugir, tendo-os
como espiões a serviço dos alemães.
Mikhail Kulakov, ainda jovem, na década de 1930. |
Passeio de Sedã
Naquele mesmo ano, agentes da KGB prenderam Mikhail na escola
onde ele lecionava. Acusado de promover “agitações antissoviéticas”, foi levado
a bordo de um Moscvich Sedã por dois agentes da KGB, e ele ficou preso quatro
dias na cadeia de Daugavpils. Depois, foi levado para a estação de trem de
Rezekne e foi levado para o campo corretivo de Ivanovo. Ele foi condenado a
cinco anos de trabalhos forçados.
Prisioneiro
Mikhail logo caiu na
dura realidade de um condenado do regime soviético. Nem todos os prisioneiros
eram dissidentes políticos ou religiosos: muitos haviam cometido crimes
convencionais como furto, roubo, falsificação ou tráfico, ou crimes mais graves
como assassinato e estupro. Mikhail foi colocado com todos estes prisioneiros
por um crime “grave” para o Estado soviético: manifestar sua fé publicamente.
Rotina
Mikhail era submetido a uma dura rotina. Primeiro, foi
enviado a uma minúscula cela onde permaneceu sozinho. Recebia refeições
escarças três vezes ao dia, e não lhe era permitido dormir antes do horário.
Durante sua internação, foi submetido a diversas sessões de interrogatório.
Apesar de ser comum submeter presos à tortura, Mikhail nunca chegou a ser
fisicamente agredido. O ataque era mais psicológico: privado de sono durante
muitas horas e com refeições de má qualidade, logo a saúde de Mikhail começou a
se deteriorar.
Isolamento
Mikhail não poderia receber visitas de seus familiares ou
amigos. Recebia apenas encomendas e cartas de sua mãe (todas submetidas à
revista). O mais próximo de uma Bíblia que conseguiu foram algumas páginas soltas
do evangelho de João. Certa vez, sua mãe conseguiu enviar a ele uma Bíblia
inteira, escondida dentro de um saco de farinha que, por sorte, não foi
revistado por completo pelos guardas, que se satisfizeram em acreditar que a
farinha era para proteger ovos que estavam colocados em seu interior. Mikhail
escondia sua Bíblia em diversos lugares, fazendo um rodízio, colocando-a em um
ponto diferente a cada dia.
Arte
O jovem professor de educação artística fazia retratos dos
prisioneiros, desenhando-os, e através de um amigo civil da fábrica de tijolos
onde os prisioneiros executavam seus trabalhos forçados, enviava
clandestinamente estes desenhos aos familiares dos detentos. Como câmeras
fotográficas eram proibidas no campo, estes desenhos eram muito úteis para a
comunicação entre os detentos e seus parentes, e Mikhail logo ganhou
credibilidade dentro do presídio e a amizade de vários detentos.
“Liberdade”
No dia 18 de Março de 1953, treze dias após a morte de Stálin,
Mikhail havia recebido sua “liberdade”. Na verdade, após o cumprimento de sua
sentença de cinco anos, ele seria retirado do sistema prisional soviético, mas
iria direto para um local de “banimento” (grande parte dos ex detentos
soviéticos deveria permanecer em um desses locais após o cumprimento de sua
sentença): Mirsikul, uma pequena aldeia de pescadores, ao norte do Cazaquistão.
Naquela época, para residir em uma cidade dentro de qualquer local da URSS, o
cidadão deveria ter a autorização em seu passaporte, com o registro de seu
local de domicílio permitido pelas autoridades regionais. Por exemplo, um
cidadão não poderia se mudar de Riga para Moscou sem ter as autorizações do
governo de Moscou. É como se, para cada cidade que se fosse mudar, fosse
necessário obter um passaporte diferente. A “liberdade” de Mikhail foi bem
restrita: ele não poderia sair de Mirsikul para nenhuma outra localidade, a não
ser com a permissão das autoridades soviéticas.
Voltando a lecionar
Graças a uma enfermeira que visitava o vilarejo de Mirsikul
para verificar a saúde dos banidos, Mikhail conseguiu informações para procurar
uma vaga como professor de artes na escola do pequeno vilarejo próximo, chamado
de Semiozernoye. Entretanto, para se mudar praquela pequena vila, Mikhail
precisava da autorização do chefe de polícia local.
Um quadro
Se já era difícil para um
cidadão comum obter licenças para mudar de endereço, imagine o quanto foi
difícil para Mikhail, um dissidente político e recém-saído do sistema penal
soviético, ainda em banimento. O chefe de polícia local aceitou conceder as
permissões para a mudança de Mikhail, em troca de um simples favor: o artista
deveria pintar um retrato de Dzerzhinsky, o fundador da KGB, para colocar na
parede vazia da delegacia. Para Mikhail, isso não foi nenhum desafio. Ele fez o
retrato e obteve suas permissões. Não é irônico que Mikhail obtivesse a chance
de voltar a trabalhar e ser mais livre pintando o retrato do fundador do serviço
secreto que o havia jogado em uma cadeia por cinco anos?
A esposa
Mikhail logo teve contato
com o grupo de adventistas da cidade de Semiozernoye. Uma das mulheres, a
senhora Agaphia, reparou nos dons de Mikhail. Ela logo lhe propôs que ele
conhecesse sua sobrinha, Anna. Os dois jovens logo se apaixonaram e Mikhail
pediu Anna em casamento. No dia 8 de Novembro de 1953, eles celebraram sua
união de modo improvisado.
Na riqueza e na pobreza
O jovem casal passou por
diversas dificuldades. Mikhail tinha seu trabalho como professor, mas somente
isso não era suficiente para sustentar toda a família. Como muitos pastores
haviam sido presos, faltavam missionários para realizar visitações e trabalhos
evangelísticos. Então, Mikhail começou a viajar por várias partes da URSS,
mesmo clandestinamente, para dar assistência aos demais cristãos. Isso
dificultou ainda mais o trabalho e os dois chegaram a passar sérias
dificuldades materiais. Isso sem contar no risco constante de voltar para a
cadeia, já que as atividades religiosas de Mikhail eram tidas como “ofensas ao
Estado soviético”. Ele chegou mesmo a ficar quatro dias detido pela KGB durante
uma de suas viagens, sem poder dar qualquer notícia à sua esposa, mas voltou
são e salvo. Os interrogatórios, perseguições, detenções e revistas seriam
constantes na vida de Mikhail, sua esposa e seus filhos, mas ele jamais foi
preso novamente. Todas as acusações levantadas contra ele não surtiam efeito.
Mikhail, já idoso, em um dos programas de TV que apresentava. |
Filhos
Mikhail e Anna tiveram seis
filhos: Evangeline, nascida em 1954; Maria, nascida em 1958; Peter, nascido em
1964; Pavel Mikhailovich Kulakov, em 1955; Michael Mikhailovich Kulakov Jr,
nascido em 1959 e Elena Mikhailovna, nascida em 1970. Evangeline tornou-se mestre
em Religião pela Universidade de Andrews; Maria é tecnóloga em Farmácia pela
Faculdade Técnica Miller-Motte; Peter é mestre em Religião pela Universidade
Andrews; Pavel é mestre em Administração pela Universidade Andrews ; Elena é
formada em Medicina pela Universidade de Loma Linda e Michael é Ciências
Políticas no Columbia Union College.
Abertura política
Durante as décadas de 1970
e 1980, Mikhail desempenhou um papel essencial na reabertura política da URSS.
Gradativamente, a liberdade religiosa aumentava dentro da União Soviética, mas
a maior parte das atividades ainda era feita de modo clandestino. Ele
participou de diversos eventos religiosos dentro e fora da URSS. Em Junho de
1977, participou da Conferência Mundial dos Líderes Religiosos pela Paz
Duradoura, Desarmamento e Relações Justas entre as Nações. Em 1982, ele foi
convidado para tomar parte na Conferência Mundial dos Trabalhadores Religiosos para
tratar de assuntos relativos à paz nuclear, em Moscou. Em 1978, participou de
uma reunião de representantes de diversas religiões em Praga, na República
Tcheca, pelo Movimento Cristão pela Paz. Em 1983, ele participou desta mesma
conferência, em Uppsala, na Suécia. Participou ainda de uma conferência de movimentos
religiosos no Japão, ainda na década de 1980.
Mikhail, na época em que atuou como presidente da IASD na Rússia. |
Diplomacia
No fim dos anos 1980, as
relações amistosas entre URSS e EUA se intensificaram. Mikhail foi convidado
para participar como representante religioso da Conferência de relações
EUA-União Soviética de Chautauqua, no Estado de Nova York, em Agosto de 1987.
Mikhail, mesmo tendo sido vítima da repressão soviética, nunca deixou de amar e
colaborar com seu país: em Outubro de 1987 ele participou do Fundo
Governamental para as Crianças Soviéticas, e ajudou na arrecadação de recursos
para o fundo, juntamente com seu representante, Albert Likhanov.
Ronald Reagan e Gorbachev. A maior aproximação entre as duas potências diminuiu a tensão de conflitos nucleares. |
União religiosa
Em 26 de Setembro de 1990,
pouco antes da queda da URSS, Mikhail participou de uma conferência dos
diversos grupos religiosos da União Soviética junto ao Soviete Supremo da URSS.
Um dos líderes presentes foi o chefe da Igreja Ortodoxa Russa, o então Alexei
II. O objetivo do encontro era promover uma nova legislação para os religiosos,
permitindo a liberdade de crença e de exercício e manifestação pública da fé.
Mikhail encontrou-se pessoalmente com então presidente da URSS, Gorbachev, no
Kremlin, e debateu com ele a questão da necessidade de maior liberdade de
crença no país. Gorbachev procurava o apoio dos líderes religiosos para seu
governo, e diversos pontos requisitados foram atendidos.
Patriarca Alexei II. Mikhail participou com ele de um encontro com o Soviete Supremo em 1990. A união das diferentes ramificações cristãs foi essencial para a maior liberdade religiosa na URSS. |
Liberdade e fé
Mikhail participou ativamente de diversos eventos pela
liberdade religiosa não só dentro da União Soviética, mas em todo o mundo. Ele
foi o responsável pela criação da filial russa da Associação Internacional para
a Liberdade Religiosa. Foi nomeado como Secretário Geral da mesma instituição e
Representante da Câmara Pública do Presidente Russo, de 1993 a 1995. Junto com
o padre Alexander Borisov, fundou a Sociedade Bíblica Russa.
Kulakov Jr. e as primeiras tiragens do Novo Testamento em Russo moderno. O filho de Mikhail terminou o trabalho iniciado por seu pai. |
Mais triunfos
Em 1922, Mikhail retirou-se do cargo de Líder da Igreja
Adventista do Sétimo Dia na Rússia, e se dedicou à tradução da Bíblia Sagrada
para o Russo moderno. Criou o Instituto para a Tradução da Bíblia, cujo
objetivo era completar o trabalho de tradução do livro sagrado. Diversos
líderes de outros ramos cristãos participaram de seu projeto. Em Abril de 2000,
o Novo Testamento havia sido concluído e a primeira edição para o Russo moderno
foi publicada. A tiragem de 12.500 cópias foi rapidamente esgotada e outra
impressão teve de ser feita. Em Agosto de 2001, ele recebeu um segundo
doutorado honorário em Teologia por sua contribuição na tradução da Bíblia.
À esquerda, o filho de Mikhail, Kulakov Jr., e o pastor Dale Galusha, com o Novo Testamento traduzido para o Russo moderno. |
Falecimento
Mikhail viveu os últimos anos de sua vida na Califórnia, nos
EUA, mas nunca deixou de visitar a Rússia. Faleceu em 10 de Fevereiro de 2010,
em sua casa, em Highland, na Califórnia. No mesmo dia de sua morte, o
Pentateuco que havia sido traduzido era impresso e distribuído na Rússia, em
Zaoksky. Ele foi enterrado no cemitério de Glenwood, em Washington, DC.
Legado e contribuições
Mikhail sofreu a intensa perseguição antirreligiosa
promovida pelos anos mais fortes do regime soviético. Foi um dos vários presos
políticos detidos por questões de fé. Passou grande parte de sua juventude
detido ou em banimento. Mesmo após sua liberdade, viveu sempre perseguido e
diversas vezes submetido a interrogatórios. Mikhail nunca chegou a sofrer
violência física, e vários oficiais com os quais teve contato converteram-se ao
Cristianismo. Mikhail Kulakov fez parte de uma heroica resistência pacífica
contra os abusos do poder soviético. Apesar de ter sido perseguido, nunca
procurou agir contra o seu país. Trabalhava em prol de seu povo e procurou a
reconciliação com o regime soviético, mostrando que não só os adventistas do
sétimo dia, mas todos os cristãos da URSS estavam empenhados em fazer de seu
país um lugar melhor. A atual liberdade religiosa na Rússia e em diversas
partes do mundo é, em grande parte, herança de homens e mulheres como Kulakov,
que devotaram suas vidas por seus ideais e por aquilo que acreditavam. O
trabalho de Mikhail não favoreceu apenas a Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas
todas as denominações cristãs da União Soviética, e até mesmo as outras
religiões da Federação.
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