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Valentina Tereshkova, dentro de um módulo espacial. |
Quando falamos nos progressos aeroespaciais e científicos como um todo, geralmente nos recordamos de grandes nomes de homens e seus tão contributivos inventos. Provavelmente, poucos sabem sobre Valentina Tereshkova, a primeira mulher a ir ao espaço. Essa conquista marcou definitivamente a inclusão das mulheres na Corrida Espacial, o período histórico nitidamente conhecido pelas disputas entre as duas potências globais da Guerra Fria, os Estados Unidos da América e a União Soviética, em busca de inovações e missões espaciais. A União Soviética conseguiu atingir certas metas muito antes dos norte-americanos. A inclusão das mulheres em todos os níveis técnicos e profissionais aconteceu de modo pioneiro na URSS, e a inserção delas nos programas aeroespaciais também foi um pioneirismo soviético.
Sua vida
Nascida na pequena cidade de Maslennikovo, no dia 6 de março de 1937, filha de um motorista de tratores (dado como desaparecido na guerra russo-finlandesa), Vladimir Aksyenovich, e de uma doméstica, Elena Fedorovna, Valentina entrou para a escola aos oito anos de idade. Aos 17 anos, abandona a escola e começa a trabalhar como operária em uma fábrica têxtil, para auxiliar sua mãe e ajudar a cuidar de seus dois irmãos (uma irmã mais velha e um irmão mais novo). Assim foi a maior parte da infância e da juventude de Valentina: criada sem o seu pai, lutando para sobreviver junto com sua mãe. Logo cedo atraída pela ciência e pela aventura, Valentina começou a praticar paraquedismo, dando continuidade aos seus estudos através de um curso por correspondência, oferecido pelo Clube de Aviação de Yaroslavl, e no dia 21 de Maio de 1959 deu o seu primeiro salto. Posteriormente, fundou um clube de paraquedismo em sua fábrica, do qual veio a se tornar presidente. Em 1961, foi eleita como secretária do Konsomol (uma unidade política da juventude socialista) de sua localidade. Recebeu certificados de conclusão de ensino técnico em sua unidade do Konsomol com especialização em tecelagem de algodão.
O primeiro homem vai ao espaço
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Yuri Gagarin, o primeiro homem a visitar o espaço. |
Quando completou 24 anos, Valentina assistiu a ida do primeiro homem ao espaço, com a missão protagonizada pelo cosmonauta Yuri Gagarin, em Abril do ano de 1961, a bordo do módulo espacial Vostok-1. A ida do primeiro homem ao espaço significou um formidável avanço aeroespacial para os soviéticos, que, até então, deram a prova de um avanço em seu programa espacial em relação aos norte-americanos, mesmo com a produção industrial inferior à dos EUA. Nessa época, os montantes destinados aos programas espaciais aumentaram consideravelmente por parte do governo soviético. Entretanto, os soviéticos não estavam satisfeitos com a ida do primeiro homem ao espaço: queriam também a conquista da primeira mulher a sair da atmosfera terrestre. O cosmonauta chefe, Kamanin, iniciou a elaboração dos planos para uma missão espacial que levaria uma mulher ao espaço, entregando seus projetos à Força Aérea Soviética, nas mãos de seu chefe de projetos, Korolev. Ele desejava conquistar essa vantagem na corrida espacial, e para isso deveria encontrar uma mulher dedicada ao Partido Comunista, preferencialmente do mesmo meio e classe de cosmonautas como Gagarin ou Titov. Em Outubro de 1961, Korolev incluiu um requerimento para a seleção de 5 mulheres entre 50 cosmonautas (ou seja, 10% da equipe).
Pavimentando o caminho
Para participar do programa espacial, não era necessária experiência em pilotagem, já que o módulo espacial Vostok era automático, e o cosmonauta era um mero passageiro. Entretanto, experiência com paraquedismo era essencial, já que, no retorno à Terra, o tripulante era ejetado da cápsula após reentrar na atmosfera. As exigências para as mulheres no programa eram: estar abaixo dos 30 anos, ser menor do que 1,70m e pesar menos de 70kg, ser esbelta e "ideologicamente pura" (leia-se sem nenhum processo ou caso de entrave com o Partido e o Politburo). Também era exigido que as mulheres tivessem experiência e formação em paraquedismo. O cosmonauta chefe Kamanin selecionou 58 garotas com potencial, e destas, 40 passaram nos primeiros testes e foram enviadas para uma entrevista e testes físicos em Moscou, em Janeiro de 1962. Tereshkova foi uma das cinco finalistas selecionadas para o projeto, em 16 de Fevereiro de 1962. Entretanto, ela não possuía formação superior, como suas colegas. As outras quatro mulheres incluíam engenheiras, especialistas em paraquedismo e técnicas.
O treinamento
Todas as cinco mulheres selecionadas - incluindo Tereshkova - começaram a realizar uma série de treinamentos. Esses treinamentos faziam parte de um curso que incluía voos com gravidade zero, saltos de paraquedas, testes de isolamento e testes de centrífuga. No início dos testes, Kamanin escolheu, dentre as cinco, três mulheres para a etapa final: Kuznetsova, Solovyova e Tereshkova. Uma delas realizaria o primeiro voo espacial feminino. Nos testes físicos, Valentina conseguiu se destacar; entretanto, nos testes de engenharia e teoria de foguetes, ela não obteve os melhores resultados. Uma série de treinamentos de pilotagem, com um MIG-15UTI para treinamentos, foi realizada; elas também realizaram uma série de 120 saltos de paraquedas. Todas as cinco foram promovidas a tenentes da Força Aérea Soviética. Valentina, nessa mesma época, foi promovida a membro do Partido Comunista da União Soviética.
O apoio
Em Maio de 1962, uma delegação soviética, incluindo o cosmonauta Gherman
Titov e o chefe Kamanin, visitaram Washington, a capital administrativa
dos EUA, participar de um churrasco na casa do astronauta norte-americano John Glenn, um entusiasta do projeto Mercúrio 13, um programa aeroespacial feminino. Nessa ocasião, ficou claro que o projeto Mercúrio 13 dos norte-americanos já estava bem avançado, e também era um desejo deles lançar a primeira mulher ao espaço. No ano de 1963, Kamanin definiu que a missão deveria acontecer dentro dos próximos meses após sua visita a John, lançando não uma, mas duas mulheres em órbita simultaneamente, nas cápsulas Vostok 5 e Vostok 6.
A escolha
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Propaganda soviética utilizando a imagem de Valentina. |
No dia 19 de Novembro de 1962, a seleção da primeira cosmonauta a ir ao espaço estava nos seus estágios finais. Das cinco selecionadas, as finalistas foram Ponomaryova (escolhida posteriormente) e Valentina. Ponomaryova se deu melhor nos testes técnicos e físicos, obtendo os maiores resultados, mas não teve um bom resultado em suas entrevistas. Foi eliminada com a justificativa de que não havia dado as respostas apropriadas, sendo considerada '"politicamente impura". Uma pergunta foi decisiva para essa escolha: os membros do Partido perguntaram para as duas "o que elas queriam da vida". Ponomaryova havia respondido que "queria tudo o que a vida lhe podia oferecer", enquanto Valentina teria respondido que o desejo de sua vida era "apoiar irrevogavelmente o Konsomol e o Partido Comunista". A questão envolveu muitas polêmicas e arbitrariedades. Ponomaryova também foi acusada de defender que uma mulher poderia "fumar e ainda assim ser decente", além de realizar viagens sozinha à cidade de Fedosiya. Esse episódio demonstra um paradoxo: apesar de incluir cada vez mais a mulher na vida política, na especialização técnica e no ensino superior, além da entrada cada vez maior em profissões avançadas, a União Soviética demonstrava uma cultura altamente conservadora e puritana. No Encontro do Partido Comunista de 21 de Março de 1963, o ideólogo Kozlov e o ministro da defesa Ustinov cancelaram a missão simultânea de duas cosmonautas, agora colocando apenas uma mulher na missão. Assim, Valentina tornou-se a escolhida.
A primeira mulher vai ao espaço
O premiê Khrushchev deu as autorizações finais para o programa. Atendendo a todas as expectativas, Valentina entra para a História como a primeira mulher a ir ao espaço no dia 14 de Junho de 1963, na cápsula Vostok 6, batizada de Chaika (Gaivota). A União Soviética agora era responsável por ter enviado o primeiro cão ao espaço (a cadela Layka), o primeiro homem (Yuri Gagarin) e a primeira mulher (Valentina Tereshkova), além de lançar o primeiro satélite artificial e construir o sistema de transportes de cosmonautas usado até hoje (a cápsula Soiyuz).
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A cápsula Vostok 6, utilizada por Valentina, após sua queda no retorno à Terra. |
Os bastidores
Algumas situações incômodas ocorreram em meio a esse marco da humanidade. Durante o voo espacial, houveram problemas técnicos, não relevados na época, mas discutidos nos memoriais de Kamanin, Korolev e Mishin, publicados após a queda da União Soviética, em 1991. Valentina jamais deu sua versão, até o ano de 2007, quando revelou sua versão daquilo que aconteceu. Korolev estava insatisfeito com a performance de Tereshkova durante sua missão, e, por isso mesmo, teria retirado dela o controle manual do módulo espacial. Mishin declarou que ela estava no "auge de sua instabilidade psicológica", e Kamanin disse em seus diários que um oficial tentou inserir um parágrafo em um anúncio , dizendo que Valentina estava emocionalmente instável durante a missão. Entretanto, segundo o próprio Kamanin, a situação havia sido exagerada. Ele relata que Valentina apenas recebeu objetivos durante o primeiro dia, os quais ela conseguiu concluir. No segundo e no terceiro dias, não havia praticamente nada que ela precisasse fazer, já que os sistemas eram automatizados e ela não havia recebido ordens diretas específicas. Kamanin ainda relata que o comando em terra não havia feito nada para auxiliar Valentina durante estes dois dias, e que ela certamente não estava cansada, nem emocionalmente instável, já que havia feito tudo que estava em seu alcance para completar o programa e se mostrou muito lúcida. O mais provável é que Valentina tenha sofrido uma tentativa de sabotagem, como se ela fosse responsável pela série de erros cometidos pelos soviéticos no projeto espacial. Apesar disso, sua missão terminou bem e ela pousou em segurança.
Dificuldades e desafios
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Valentina em uma sessão de treinamentos, na Vostok 6. |
Valentina enfrentou diversos desafios e problemas durante seu voo espacial. Em primeiro lugar, a comida que ela recebeu era péssima: o "pão negro" era seco demais, praticamente impossível de engolir, e ela acabou ingerindo uma quantidade pequena de calorias, já que a maior parte dos alimentos não pôde ser consumida no espaço. Ela enfrentou dores musculares que, no terceiro dia, se tornaram praticamente insuportáveis. Por conta da pressão exercida por seu capacete, ela também enfrentou dores em seus ombros e em seu pescoço. Durante seu processo de pouso, tendo sido ejetada da cápsula, Tereshkova estava a ponto de cair em um grande lago. Exausta, desidratada e faminta, ela não acreditava ser capaz de nadar até a margem. Por sorte, um forte vento acabou afastando-a do lago, mas a fez sofrer uma grave queda. Com o impacto, ela bateu o nariz em seu capacete, o que lhe causou um hematoma. Quando a equipe de solo a resgatou, utilizaram muita maquiagem para disfarçar o ferimento, a fim de torná-la mais atrativa para as entrevistas públicas. Ela temeu que o excesso de maquiagem prejudicasse sua imagem de "mulher operária pura". Permaneceu três dias em órbita, mais tempo do que toda a permanência espacial dos astronautas norte-americanos juntos.
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Valentina e Gagarin: o primeiro homem e a primeira mulher a irem ao espaço. |
Ironias e incongruências
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Valentina junto com Valery Bykovsky, Herman Titov, Yuri Gagarin, Andriyan Nikolayev, Pavel Popovich e Boris |
Apesar da pioneira participação feminina nos programas espaciais soviéticos, estas mulheres eram mais "objetos de propaganda" do que efetivamente cosmonautas. Após a participação de Valentina e até a queda da URSS, as mulheres cosmonautas apenas realizavam missões substituindo homens que, diante de algum imprevisto, não pudessem realizar os projetos. A "igualdade" soviética era verdadeiramente uma farsa: os homens praticamente "monopolizavam" os projetos e programas, e recebiam muito mais incentivos e benefícios do que as mulheres. Como o objetivo já havia sido conquistado (levar a primeira mulher ao espaço), que necessidade havia em investir continuamente nas mulheres cosmonautas? Assim, as mulheres que participavam dos programas espaciais eram peças secundárias, estepes de substituição, e não efetivamente membros que exerciam um trabalho de igual para igual com os homens.
Família e casamento
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Valentina e Nikolayev, na cerimônia de casamento celebrada em Moscou. |
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Valentina e sua filha, Elena. |
Valentina casou-se com Adrian Nikolayev, em 3 de Novembro de 1963, em uma união praticamente "arranjada" pelo premiê Khrushchev, que achou uma boa ideia unir os cosmonautas e insistiu com os dois - com a ajuda de Kamanin - a tal ponto que definitivamente se uniram, em uma cerimônia comemorada no Palácio de Casamentos em Moscou. A cerimônia foi realizada pelo próprio Nikita Khrushchev, com a participação de membros do alto escalão do governo e do programa espacial. Em 8 de Junho de 1964, Valentina dá à luz Elena Andrianovna, sua primeira e única filha. Infelizmente, a vida do casal não era das mais felizes. Entretanto, caso se divorciassem, suas carreiras seriam terminadas (um costume da época). Logo, pela conveniência profissional, se mantiveram juntos durante algum tempo. Em 1978, durante entrevistas com as comissões médicas, ela conheceu o físico Yuliy Shaposhnikov, que trabalhava na academia militar médica. Os dois acabaram se apaixonando, e o já frágil casamento com Nikolayev acabou no ano de 1982 (tendo os dois se separado já em 1979). Valentina não passou nos testes para realizar novos voos, e nunca mais foi ao espaço. Ela viveu com seu segundo esposo até a morte dele, em 1999. Os dois tiveram uma vida feliz juntos.
Vida acadêmica, partidária e política
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Valentina acompanhada de membros políticos do Partido Comunista, em 1969. |
Tereshkova graduou-se em Engenharia na Academia Aérea Militar em 1969. Após sua graduação em Outubro de 1969, a equipe feminina de cosmonautas foi dispensada. Ela se tornou um membro proeminente do Partido Comunista e uma representante do governo soviético em inúmeros encontros, eventos e organizações femininas internacionais. Participou como membro do Concílio de Paz Mundial de 1966; integrou o Soviete Supremo de Yaroslavl em 1967; participou do conselho da União do Soviete Supremo de 1966 a 1970 e de 1970 a 1974; foi eleita para a bancada do Soviete Supremo em 1974; atuou como representante soviética na Conferência Internacional do Ano das Mulheres, na Cidade do México, em 1975, e continuou como deputada do Soviete Supremo durante os anos 1980, atuando também como vice-presidente da Federação Internacional das Mulheres, exercendo inúmeros outros cargos em organizações internacionais. Foi condecorada com muitas medalhas e distinções, incluindo duas Ordens de Lênin, uma medalha de Heroína da União Soviética, uma Medalha de Ouro da Paz das Nações Unidas, um prêmio Simba do Movimento Internacional das Mulheres e uma medalha de ouro Joliot-Curie. Apesar de participar em tantos eventos e movimentos das mulheres, Valentina levou um estilo de vida apegado às tradições, aos costumes equilibrados e à dedicação familiar. Precisamos entender o contexto soviético: de fato, homens e mulheres não eram tidos como inimigos ou adversários dentro daquela sociedade, sendo a unidade familiar alvo de grande incentivo tanto pelo governo quanto pela própria comunidade. O progresso da mulher soviética não se restringia à carreira, mas incluía também as funções de esposa e mãe.
Em 2011 foi eleita deputada pelo partido Rússia Unida, o mesmo de Putin e Dmitri Medvedev.
Em 2013, durante as comemorações do 50º aniversário de seu voo, recebeu a Ordem de Alexandre Nevsky das mãos de Vladimir Putin.
Valentina levou boa parte de sua vida nas redondezas da Star City, uma localidade criada especialmente para membros de programas espaciais, recebendo constantemente seus amigos de longa data, além de sempre ser visitada por sua filha e seus dois netos, Andrei e Aleksei.
Atualmente ela vive entre Yaroslavl, perto da filha, e Moscou onde exerce seu mandato parlamentar.
Legado
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Valentina e o astronauta norte-americano Neil Armstrong. |
Apesar de ter sido tomada para fins de propaganda comunista, não podemos considerar que Valentina era tão somente um produto ou uma criação artificial, uma mentira propagandista.
Ela foi uma mulher verdadeiramente esforçada, que experimentou as dificuldades da vida agrária soviética, as dificuldades do trabalho operário, as perdas da guerra (onde ela perde o próprio pai)
e os desafios de ajudar a própria mãe a criar os irmãos e, ao mesmo tempo, procurar uma formação. Podemos considerá-la como uma filha dedicada, uma aluna esforçada, uma boa funcionária, esposa e mãe devotada (apesar de seu infeliz casamento com seu primeiro marido). Deixando de lado os exageros da propaganda soviética, e - ao menos por alguns instantes - esquecendo as motivações ideológicas na escolha dela para um projeto tão pioneiro, devemos admitir os méritos dessa conquista e o quanto ela representou para a inclusão das mulheres na vida pública, política e profissional.
Valentina foi a primeira, mas não a única mulher a alcançar o espaço, e hoje a participação feminina em tais programas é bastante considerável.