A abolição da escravatura, assinada pela então princesa Isabel em 13 de Maio de 1888, na prática, significou pouco para os então negros libertos. Sem estudos, sem bens e sem trabalho, a maioria dos negros viu-se completamente marginalizada socialmente. Isso sem contar no preconceito e na estratificação social que terminaram apenas artificialmente, mas permaneceram muito reais no cotidiano. Essa dominação social continuou não apenas no sentido psicológico e cultural, mas também no próprio sentido físico. Os castigos físicos e humilhações psicológicas sofridos pelos marinheiros brasileiros culminaram com uma revolta de repercussões especiais, marcante para nossa História.
A Marinha e a chibata
A maioria dos marujos eram pessoas pobres, especialmente negros. Com a falta da oferta de trabalho para tais pessoas, muitos eram atraídos pelas promessas de um bom salário e, apesar da dificuldade e da natureza arriscada do trabalho, viam nele uma forma de crescimento social perante a sociedade. Um uniforme, afinal, "valoriza" um homem. Entretanto, a realidade era muito diferente da teoria e dos convites dos oficiais de alistamento: a comida era escassa e de péssima qualidade, os alojamentos eram horríveis e as mínimas faltas e erros eram punidos com castigos físicos que, entre outras coisas, incluía chibatadas e isolamento em celas.
Encouraçado Minas Gerais
Os marujos não aceitaram tal situação passivamente. A maioria deles, composta por negros e mulatos, logo correlacionou essa prática como uma continuação do próprio modo escravagista de relações sociais. Lembravam-se, assim, dos próprios antepassados, seus avós, sofrendo castigos terríveis amarrados à troncos, com os chicotes estalando em suas costas. No ano de 1910, no dia 22 de Novembro, liderados por João Cândido, um almirante negro, motivados pelo castigo sofrido pelo marinheiro Marcelino Rodrigues (que sofreu 250 chibatadas na frente de todos os outros tripulantes), fizeram um motim e tomaram o navio Minas Gerais, após matarem o comandante do navio e três oficiais.
Encouraçado Minas Gerais, o primeiro encouraçado a ser tomado por um motim para a Revolta da Chibata. |
Encouraçado São Paulo
Os revoltosos do encouraçado Minas Gerais lançaram o curso para a Baía do Guanabara, e ali se uniram ao encouraçado São Paulo, que também havia sido tomado após um motim e se uniu à revolta. O plano era se dirigir à então capital do país (Rio de Janeiro) e, assim, direcionar as exigências dos marinheiros para o governo. Inicialmente, os objetivos eram de alcançar as reivindicações de modo diplomático e pacífico, mas os marujos se prepararam para o pior.
Encouraçado São Paulo, o segundo navio a se unir aos revoltosos. |
Terror no Catete
Depois, o Cruzador Bahia também se uniu aos revoltosos. João Cândido redigiu uma carta contendo as reivindicações dos marujos. Entre elas, o fim dos castigos físicos, a melhoria na alimentação oferecida aos marujos e a anistia (perdão judicial) para todos os envolvidos na revolta. Prevendo a falta de cooperação do governo, os revoltosos decidiram apontar os canhões dos encouraçados para a cidade do Rio de Janeiro, e, caso as autoridades não atendessem às reclamações, os rebeldes iriam disparar contra a cidade, incluindo o palácio do Catete.
Então, sim!
O então presidente da República, Hermes da Fonseca, aceitou atender aos pedidos dos insurgentes. Assim, decretou-se a proibição de punições físicas para os membros da Marinha. As punições, então, deveriam ser somente de caráter administrativo e disciplinar. As refeições também deveriam ser melhores, bem como o salário deveria ser aumentado. Decretou-se, também, o perdão governamental para os rebeldes. Mas, na prática, essas mudanças legais não surtiram efeito real, e os revoltosos sofreriam uma traição.
Marinheiros à bordo do Cruzador Bahia, a terceira embarcação a se unir à revolta. |
Ilha das Cobras
Após estes decretos, o presidente Hermes exigiu que alguns marinheiros considerados líderes do movimento fossem expulsos da corporação. Isso causou uma nova revolta que teve lugar à Ilha das Cobras. Essa nova revolta foi duramente reprimida pelo governo, e vários dos marinheiros foram aprisionados em celas subterrâneas na Fortaleza da Ilha das Cobras. Devido às péssimas condições do local, alguns encarcerados morreram. Outros prisioneiros foram enviados para a floresta amazônica, trabalhando de modo forçado para a produção de borracha (na época, um dos principais produtos brasileiros).
Adeus, João Cândido
João Cândido, considerado como líder principal das revoltas, foi expulso da corporação e internado, tendo sido considerado como lunático no Hospital de Alienados. Em 1912, ele foi absolvido das acusações feitas contra ele, junto a outros marinheiros que também tomaram parte nos motins. Essa atitude, entretanto, não desfez a traição sofrida por João e pelos marinheiros revoltosos.
Verás que um filho teu não foge à luta!
A Revolta da Chibata foi um movimento insurgente de caráter legítimo, uma manifestação e uma resposta contra um sistema que insistiu em continuar utilizando-se de técnicas típicas do período de escravidão. Os pobres e negros eram tratados pelos oficiais da Marinha como animais, sendo psicologicamente abusados e fisicamente castigados. João Cândido é um exemplo nacional da luta e da resistência de um grupo de pessoas determinadas, de homens decididos a melhorar suas condições de vida, insatisfeitos com um sistema que lhes é injusto. As condições dos marujos brasileiros melhoraram muito após esta revolta, e certamente a luta de João Cândido e de seus companheiros não foi em vão.
0 comentários