Fotos tiradas do ambiente interno do Hospital Colônia de Barbacena. Estima-se que entre 1930 a 1980 cerca de 60.000 pessoas morreram na instituição. |
Certos capítulos da História nacional são praticamente desconhecidos. A palavra "genocídio" nos remete sempre a crimes estrangeiros, mas poucos de nós sabemos dos atos bárbaros cometidos no Brasil. Houve um verdadeiro genocídio brasileiro, um genocídio silencioso, quieto e misterioso, e esse genocídio é tema do artigo deste final de semana.
O Hospital Colônia
Foto da fachada do Hospital Colônia de Barbacena. Por trás desta bela arquitetura se escondiam terríveis torturas. |
Criado pelo governo estadual de Minas Gerais em 1903, o Hospital Colônia, localizado na pequena cidade de Barbacena, inicialmente tinha como objetivo o tratamento de pacientes com tuberculose. Posteriormente, passou a servir como local de recolhimento de pessoas com problemas e distúrbios mentais. Com duzentos leitos inicialmente, atingiu a marca de cinco mil internos em 1961. O hospital, em sua época, era um dos maiores hospícios do país.
Hospício para normais
Estima-se que cerca de 70% daqueles que foram internados no Hospital Colônia não possuíam qualquer tipo de transtorno mental. O local servia para uma espécie de "eugenia" brasileira, onde alcoólatras, prostitutas, homossexuais, idosos, adolescentes grávidas, mendigos e outros tipos de pessoas eram submetidos a uma verdadeira prisão.
Masmorra e sofrimento
Os internos dormiam em colchões forrados com feno ou capim, submetidos a diversas torturas. |
Adotando medidas pseudo terapêuticas típicas do século XVIII, os "tratamentos" consistiam em castigos físicos, tortura, privação de sono e de comida, reclusão total e diversos atos de violência física e psicológica. Estimativas apontam que cerca de 60.000 pessoas morreram apenas durante 1930 e 1980. Este número pode ser bem maior, se avaliarmos a data de abertura do "hospital".
Comércio de corpos e órgãos
Os mortos eram vendidos para diversas faculdades do país. Aqueles que morrem declarados como indigentes podem ser utilizados para estudos de anatomia e química, por exemplo. E, como a maioria dos internos não tinha qualquer parente ou quem zelasse por eles, eram registrados como indigentes. O "comércio" tornou-se uma fonte de lucros para as diversas administrações do local. Até 1980, estima-se que 1.853 corpos foram comercializados com cerca de 17 centros acadêmicos diferentes, além de órgãos e ossos. Um montante de R$600.000,00 é estimado como tendo sido oriundo dessa movimentação.
Presos políticos
Durante os governos militares, o local foi usado como depósito para presos políticos. Muitos dos supostos envolvidos com atividades subversivas foram diagnosticados como loucos e enviados para o hospício em Barbacena. Estas pessoas obviamente não eram doentes mentais, mas sim, perseguidos políticos. O hospício serviu como uma espécie de prisão não declarada para os opositores dos regimes militares.
Transporte
Os internos chegavam ao local via trem, geralmente transportados no último vagão, que era solto e alocado aos fundos do hospício. O vagão ganhou o apelido de "trem de doido" pelos mineiros. A viagem era sem volta: a maior parte dos internos jamais recebia alta.
Muitos dos internos eram presos políticos do regime militar. |
Raramente visitantes externos iam até o local. Um destes visitantes foi o doutor Wellerson Durães de Alkmin, de 59 anos, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Ele visitou o local em 1975, e relata sua experiência com as seguintes palavras: ""Eu era estudante do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em Belo Horizonte, quando fui fazer uma visita à Colônia 'Zoológica' de Barbacena. Tinha 23 anos e foi um grande choque encontrar, no meio daquelas pessoas, uma menina de 12 anos atendida no Hospital de Neuropsiquiatria Infantil. Ela estava lá numa cela, e o que me separava dela não eram somente grades. O frio daquele maio cortava sua pele sem agasalho. A metáfora que tenho sobre aquele dia é daqueles ônibus escolares que foram fazer uma visita ao zoológico, só que não era tão divertido, e nem a gente era tão criança assim. Fiquei muito impactado e, na volta, chorei diante do que vi."
Lições e Sequelas
Foto de internos do Hospital Colônia, amontoados em um pátio. |
O tratamento dispensado no Hospital Colônia de Barbacena é reflexo do modelo europeu baseado nos ideais de Eugenia ("limpeza social"), aplicados especialmente durante o século XIX e a primeira metade do século XX, tendo sido ainda utilizado em escalas menores após esse período. A política brasileira de tratamento psiquiátrico demonstrou ser mais uma ação ideológica, política e comercial do que humana. Os hospícios no Brasil são historicamente lugares de reclusão, e não de tratamento. Os pacientes considerados "normais" já são submetidos a um tratamento desumano nos hospitais, logo, podemos imaginar em que condições são submetidos os pacientes com alterações mentais. Barbacena ficou conhecida como a "cidade dos loucos", e o estigma dos doentes mentais não é algo que terminou com o fechamento do Hospital Colônia. Até os dias atuais, são frequentes os relatos de maus tratos e barbaridades cometidas contra pessoas sem voz e sem consciência, nos locais mais remotos do Brasil. Estas prisões se escondem sob o nome de instituições terapêuticas, mas elas mesmas fazem parte da enorme doença que é muito pior do que aquelas mentais: a doença moral que acomete nossa medicina atual. Infelizmente, ainda existem inúmeras instituições que atuam como o Hospital Colônia atuou.
Referências:
Sobre o caso, vale a pena ler o livro "Holocausto Brasileiro", da jornalista Daniela Arbex.
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