O tzar Nicolau II e sua família. Em 1918, todos eles foram executados pelos bolcheviques. |
Quando estudamos o ano de 1917, logo nos vêm à cabeça o início da União Soviética. Pensamos nos revolucionários triunfantes, na bandeira vermelha com a foice e o martelo e a vitória dos Bolcheviques. Mas não paramos para pensar que, se 1917 significou a alegria dos comunistas, também foi o fim de um modelo de governo milenar, um "semi" feudalismo existente em pleno século XIX. O "ano vermelho" foi o fim do tzarismo russo e a derrocada de um regime que misturava autoritarismo, populismo russo, aristocracia, misticismo e sentimento paternalista com um forte apelo nacionalista.
À direita, o pequeno Nicolau II, o futuro tzar da Rússia. |
O Tzarismo
O regime tzarista, iniciado por Ivan IV, o Terrível, no ano de 1530, era um regime centralizador, teocrático e autoritário de cunho monárquico. O tzar, ou imperador, era o detentor de um poder centralizado naquilo que podemos considerar como "monarquia absolutista". A aliança entre o poder do tzar e o clero religioso da Igreja Ortodoxa Russa era bem estreita e os líderes religiosos validavam o poder do tzar. A Rússia era, então, um Império, onde territórios e nações aglutinadas sofriam um processo de russificação (assimilação à cultura russa), o que, na prática, limitava muito a liberdade das minorias étnicas aglutinadas ao império russo.
Casas reais
Fazendo uma breve listagem dos tzares, percebemos que os diferentes grupos familiares que passaram pelo poder eram divididos em Casas, ou seja, em diferentes dinastias. Podemos citar a Casa dos Rurikovich, a Casa dos Godunov, a Casa dos Shuysky, a Casa dos Vasa e a Casa dos Romanov. Estas diferentes casas não fizeram uma sucessão sempre pacífica entre si: durante alguns momentos, houveram usurpadores, como os falsos Rurikovich usurpadores, que reinaram de 1 de Junho de 1605 a 28 de Março de 1611. Durante a dominação mongol, os soberanos russos eram submetidos ao comando dos invasores, até que o jugo da Horda Dourada foi sobrepujado e os russos foram novamente livres.
O último Tzar
Nikolai Aleksandrovich Romanov, mais conhecido como Nikolai II (em nossa língua, Nicolau II), nasceu perto de São Petersburgo em 18 de Maio de 1868. Foi o filho mais velho do tzar Alexander III. Sucedeu o pai subindo ao trono em 1894. Neste mesmo ano, casou-se com a princesa Alexandra, uma monarca alemã. Eles tiveram cinco filhos: quatro meninas e um menino, Alex, que era portador de hemofilia. Nicolau governou por pouco tempo, e não pôde confiar em seu corpo de ministros.
Derrota Humilhante
Nicolau incentivou a expansão imperial russa, especialmente na região da Manchuria, disputada com o Japão. O resultado foi o envolvimento em uma guerra prematura contra o Japão que, na época, já dava sinais de seu poderio naval. Os russos, menos preparados, sofreram pesadas baixas e saíram derrotados do conflito. A situação do país, já precária, agravou-se ainda mais. A frágil economia russa, majoritariamente agrícola, começou a dar sinais de tropeço, e a situação no campo piorou.
Uma Rússia paradoxal
É mentira que a Rússia do século XIX não possuía nenhum nível de industrialização. Em verdade, havia um conjunto razoável de indústrias, mas eram concentradas em torno de São Petersburgo, então, capital do Império Russo, muito poucas se comparadas ao países ocidentais. Além disso, estas indústrias estavam nas mãos de capitais estrangeiros. A burguesia russa, ainda mal desenvolvida, estava submetida à aristocracia que lhe impunha grandes restrições. De fato, os burgueses em si possuíam muito pouco poder. Os revolucionários, a despeito dos preceitos de Marx, não derrotaram uma classe essencialmente burguesa e capitalista, mas sim uma aristocracia agrária. Marx previra que o Socialismo só seria viável em um país com alto grau de desenvolvimento capitalista e industrial, mas a Rússia da época era uma nação agrária e extremamente atrasada em seu parque industrial. A quantidade de ferrovias, por exemplo, era muito insuficiente. Barcos a vapor eram um luxo do qual poucos poderiam desfrutar. A Rússia dos luxos aristocráticos era também a Rússia da miséria campesina; a Rússia da pobreza industrial era também a Rússia da riqueza científica e intelectual. Terra de paradoxos e de dualismos: este foi o reino que Nicolau tentou governar.
Injustiças e condenações
É um erro histórico demonizar a figura do tzar Nicolau II. Primeiro, pela perspectiva que, de fato, o tzar poderia conhecer pouco da realidade de seu próprio reino. A Rússia, imensa em sua extensão, certamente não era um território fácil de se administrar, principalmente sem as facilidades de transporte e comunicação que temos hoje. Além disso, muitos conspiravam contra o tzar, e é possível que seus funcionários omitissem a realidade social do país. De fato, o povo russo sentia uma espécie de "idolatria" pelo soberano: chamavam-no carinhosamente de "paizinho".
Erupção da Revolta
As primeiras revoltas foram levadas à cabo por camponeses insatisfeitos com um regime de semi servidão, praticamente medieval. Esporádicas e estratificadas, estas revoltas foram rapidamente suprimidas. Não se objetivava, até então, retirar Nicolau do poder: a intenção era apenas garantir reformas populares. Mesmo assim, nascia então o germe do fim do império.
Foto reconstruída do tzar Nicolau II. |
Domingo Sangrento
Em Janeiro de 1905, uma manifestação popular pacífica teve lugar em São Petersburgo, pedindo por reformas populares, especialmente em relação ao campo. A oposição a Nicolau cresceu, e, em resposta, ele criou uma série de reformas garantindo direitos ao povo e permitindo a reunião da Duma, um tipo de parlamento, em um gesto de boa vontade ao povo. Entretanto, a manifestação que tinha um caráter generoso em relação ao tzar terminou de forma trágica: os soldados atiraram na população desarmada, próximo ao Palácio de Inverno, matando centenas de pessoas. A partir de então, o ódio ao tzar cresceu. É difícil imaginar que o tzar tenha dado tal ordem; mas, caso tenha feito, pode ter sido incentivado por sabotadores que o alertaram falsamente contra uma insurreição do povo. No temor de sofrer o golpe, então, o tzar teria ordenado o fuzilamento dos possíveis "revoltosos armados". Entretanto, estas são apenas versões que provavelmente jamais saberemos com total clareza. Creiamos que um tzar não tenha tido a "coragem" de atirar contra o próprio povo que o chama de paizinho!
A Revolução de 1917
Soviéticos revolucionários em reunião no dia 22 de Outubro de 1917, em Petrogrado. |
Mesmo com a implementação de reformas, Nicolau foi incapaz de conter o furor revolucionário e dobrar sua oposição. Em 1917, os bolcheviques ("a maioria", em uma tradução livre) tomam o poder e depõe Nicolau II: estava criada a União Soviética. No ano seguinte, em 1918, Nicolau e toda sua família foram mortos pelos revolucionários. Este foi o triste fim de um tzar que, em suas mãos, tomou um Império adoecido, um povo ansioso por mudanças, uma base governista pouco confiável e uma oposição sabotadora.
Vilão ou herói?
Nicolau e seu filho, o príncipe Alexis. |
Devemos evitar, em se tratando de História, a demonização de uma figura. Grande parte das informações que temos sobre a pessoa de Nicolau e seu governo foram criadas pelos próprios soviéticos que, em sua propaganda revolucionária, pintaram a família real como a causa de todos os problemas russos. É verdade que a situação social russa estava deteriorada, mas essa herança vinha de muitos séculos atrás, e não pode ser totalmente imputada a Nicolau. O tzar é retratado como um tirado que não atende ao povo. Mas devemos levar em conta que Nicolau não contava com uma base que cooperava, nem os próprios monarcas facilitavam a ligação entre ele e o povo, e a maior parte da aristocracia o impedia de implementar as mudanças necessárias. Contamos ainda com a propaganda negativa dos revolucionários, a crise com a fracassada guerra contra o Japão e a precariedade de um sistema de servidão que Nicolau tentou sim mudar, mas não teve o tempo suficiente para desfazer uma estrutura de mais de um milênio e meio. Impossível determinar o caráter de Nicolau: hora parece agir como um distante e mudo, hora dialogava com o povo e atendia, ao menos em parte, suas demandas.
O fim dos Romanov
Nicolau II, sua esposa, a imperatriz e seus filhos, as princesas . |
Os socialistas foram bem sucedidos mais por conta da fragmentação do governo de Nicolau do que por sua própria competência. Podemos dizer que, caso Nicolau obtivesse mais apoio para as reformas necessárias, e erros cruciais como o Domingo Sangrento não tivessem ocorrido, não será difícil imaginar uma Rússia ainda imperial. Ao que parece, o tzar teve o azar de ser mal informado e de não conseguir estabelecer uma ligação mais direta com o próprio povo. Em um sistema semi feudal, onde cada nobre de uma região detinha para si o poder, é difícil colocar toda a responsabilidade da degradação social nas costas de um único homem. Nicolau mesmo chegou a declarar que "o imperador anterior não o havia advertido sobre estas coisas, e não era possível que ele tomasse as melhores ações em uma situação que ele não se preparou com antecipação". A versão oficial de que Nicolau foi um tirano é facilmente contestável: mesmo nos dias atuais, grande parte da população russa admira a figura de Nicolau que, pela Igreja Ortodoxa, é considerado como um santo. Nicolau II parece uma daquelas tristes figuras política que, pela circunstância, pelas pessoas e pelo curso das coisas não chega a ter a oportunidade de exercer plenamente o seu potencial. Admitindo ou não, e independente da visão ideológica, temos de assumir que Nicolau e sua família foram vitimados pelos revolucionários de forma covarde e criminosa. A ideologia da luta de classes, entretanto, coloca em eclipse esse crime.
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