Você consegue imaginar um homem
sobreviver à mais sangrenta guerra da História humana apenas com uma
"arma" de madeira? Consegue imaginá-lo sendo não apenas um dos poucos
sobreviventes, mas um dos únicos que não sofreu nenhum ferimento de
guerra? Esse homem existiu, e seu nome foi Franz Hasel: o pacifista que
não matou, não morreu e partiu da guerra com sua consciência limpa. E,
como se isso não fosse o bastante, desafiou o regime nazista e viveu pra
contar seus feitos.
Um homem de 40 anos é convocado
Quando
Gerhard Franz Hasel foi convocado, a Alemanha estava em seu pleno auge
expansionista. Mas não era de se imaginar que um homem de 40 anos de
idade também fosse convocado. Em 1939, ele foi convocado para a guerra. E
não foi enviado para uma companhia qualquer: Franz foi escalado para
uma unidade de frente de batalha, de soldados de elite, nomeada de
Companhia Pioneira 699. A tarefa dos soldados dessa companhia era
assegurar a linha de frente, abrir estradas, construir pontes e
passagens para que as tropas da retaguarda pudessem avançar. Franz já
havia servido nessa unidade de elite durante a Primeira Guerra Mundial.
Assim, o homem que não queria fazer guerra teve de deixar para trás sua
esposa e seus três pequenos filhos.
Um pacifista no campo de batalha
Na foto, Franz Hasel com sua esposa Helene, sua filha Lotte, seu filho Kurt e seu filho Gerhard. |
Franz
foi enviado para o fronte na França, 75km longe de seu lar, em
Frankfurt. A missão de Franz e seus colegas era garantir passagens para
os veículos que teriam diante de si uma missão praticamente impossível:
ultrapassar a famosa linha Maginot, uma série de fortificações na
fronteira da Alemanha com a França, estendendo-se por 150km. Para os
franceses, essa era uma linha intransponível. Mas os ataques aéreos
alemães e a manobra pelas Ardenas (uma região montanhosa repleta de
árvores), uma região por onde os franceses jamais esperariam um avanço,
garantiram que a França fosse dominada em cinco semanas. Em Junho de
1940, os nazistas tomaram Paris.
Rumo ao Leste
Rumo ao Leste
Hasel,
junto com sua companhia, atravessou a fronteira com a Ucrânia no dia 1
de Julho de 1941. Agora, ele estava na frente Oriental, a mais sangrenta
de toda a Segunda Grande Guerra. Conforme os nazistas avançavam pela
Ucrânia, eram recebidos como heróis pelos ucranianos, vítimas do pesado
jugo soviético. Só em Agosto de 1941, os soviéticos já haviam perdido
cerca de 3 milhões de soldados. A vitória parecia fácil e rápida, além
de garantida. Entretanto, Hasel não matou um só inimigo nem jamais fez
qualquer prisioneiro. O comportamento pacifista de Hasel, completamente
diferente da atmosfera e do contexto da guerra, o colocou em perigo por
diversas vezes.
Hasel com seu rifle de treinamento. Durante a guerra, ele jogaria fora sua arma e só usaria um simulacro de madeira. |
Convicções pessoais
Hasel
era um alemão. Um alemão da época nazista. Não é difícil imaginar que
ele e sua família tenham seguido a onda dos milhões de compatriotas que
rendiam suas vidas ao ideário hitlerista. Mas Hasel e sua casa
literalmente foram contra a multidão. Eles jamais se alistaram no
Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Partido
Nazista. Hasel e sua família (sua esposa Helene, sua filha do meio
Lotte, seu filho mais velho Kurt e seu filho mais novo, Gerhard) eram
adventistas do sétimo dia. A Igreja Adventista do Sétimo Dia foi uma das
poucas instituições religiosas da Alemanha que não ofereceram apoio ao
regime nazista. Na verdade, para as autoridades nazistas, ser adventista
era sinônimo de ser judeu. Assim, tanto Franz quanto sua família
sofreram diversos assédios durante todo o período nazista. Hasel não
poderia participar ativamente de uma guerra: ele foi para o campo de
batalha contra a sua vontade. Mas, segundo suas determinações
espirituais, decidiu que não mataria, mesmo que fosse necessário fazer
isso para se defender. Se ele voltasse vivo, seria unicamente por conta
da vontade divina. A fé de Hasel foi totalmente contrária aos princípios
racionais básicos de um soldado no campo de batalha. Mas ele não
somente iria sobreviver, como toda a sua família sairia intacta.
Sem filiação, sem comida
Unidade da Juventude Hitlerista (Hitlerjugend). Kurt, o filho mais velho de Hasel e Helene, chegou a participar temporariamente da organização, mas ao perceber a ideologia do movimento, Helene retirou-o do grupo. Eventualmente, Kurt teve de fugir. |
Enquanto
Franz estava no campo de batalha, Helene e seus filhos estavam em
Frankfurt. Como Helene não era membro do Partido Nazista, sofria graves
riscos de perder seus vales de alimentação e outros benefícios sociais.
Como seus filhos não estudavam aos sábados, por diversas vezes ela
sofreu a pressão do diretor da escola, com ameaças de que eles seriam
expulsos e não poderiam concluir seus estudos. Doering, um vizinho seu,
membro do Partido, começou a assediar Helene dizendo que, caso ela não
se filiasse, perderia a guarda de seus filhos. A sra. Holling, uma
vizinha judia de Helene, foi levada pela Gestapo e levada ao campo de
concentração de Theresienstadt. Felizmente, ao fim da guerra, ela voltou
com vida. Helene teve de viver escondida, durante um tempo, em uma
floresta, junto com a sra. Fischer, uma caridosa e gentil senhora que
deu abrigo a ela e a seus filhos. Certa vez, quando Helene teve seus
benefícios bloqueados e quase ficou sem ter o que comer, se dirigiu ao
chefe do Partido Nazista em Frankfurt, Gauleiter Springer. Gauleiter era
conhecido por seus métodos de carniceiro e por ser extremamente
desumano. Mas, de uma maneira inexplicável, foi permitido novamente o
recebimento da pensão para Helene. Ele explicou que uma família, os
Scheneider, havia dado apoio a Springer e sua família quando sua casa
foi bombardeada. Por "coincidência", os Schneider também eram
adventistas. O que Helene não esperava, era que o homem que ela pensava ser Gauleiter, na verdade era alguém que o estava substituindo somente naquela dia, pois Gauleiter nunca havia faltado ao seu posto.
Um retorno e uma filha
Em
1943, Franz fez um pequeno retorno à Frankfurt, que não duraria muito
tempo. Ele reviu seus familiares e seus filhos. Daquele reencontro,
nasceria uma nova criança: Susi, a pequenina sobrevivente da guerra.
Frankfurt sofreu pesados bombardeios nos anos finais da guerra, mas nem o
frágil bebê, nem as crianças, nem Helene sofreram qualquer tipo de dano
por conta das bombas. O bloco de prédios onde eles moravam foi um dos
únicos locais não destruídos pelas bombas dos Aliados.
Manias ou fidelidade?
Capa do livro em versão polonesa, contando a fantástica história de Hasel. |
Durante
a guerra, Hasel não permitiu que as terríveis circunstâncias o fizessem
deixar de cumprir com suas doutrinas e com suas obrigações religiosas.
Os soldados alemães recebiam cada vez menos suprimento, e, do pouco que
recebiam, a principal parte eram derivados de porco. Franz não podia
comer carne de porco, por conta de seus princípios (o que muitas vezes o
fez ser confundido com um judeu). Com a ajuda de um amigo cozinheiro,
Willi, ele conseguiu se virar, arranjando outras coisas para comer,
como porções extra de pão e leite. Era incrível como, em meio a tanta
escassez, Franz nunca tivesse ficado sem ter o que comer. Franz foi
promovido a um posto maior, e teria direito de escolher qualquer arma
que quisesse. Entretanto, ele jogou fora sua pistola e, no lugar, fez um
simulacro de madeira, parecido com sua pistola antiga. Essa foi a única
"arma" de Franz durante grande parte de sua estadia na guerra. Ele era
um ótimo atirador, considerado o melhor de seu pelotão, mas jamais
realizou um disparo sequer contra seus inimigos.
Ajudando amigos e "inimigos"
Enquanto
Hasel serviu no campo de batalha, ajudou diversas pessoas. Não
raramente, quando sabia que a SS (a elite militar nazista mais fanática)
iria executar um extermínio em determinado lugar, ele conseguia,
secretamente, avisar os habitantes para que pudessem fugir. Ao realizar
missões em locais onde haviam campos de prisioneiros, Hasel também dava
comida a eles. É importante lembrar que ajudar prisioneiros ou inimigos,
mesmo que apenas dando comida além daquela que era oficialmente
distribuída, ou mesmo tratar de ferimentos, era um ato de alta traição
passível de ser punido com a morte. Hasel não pode ser considerado um
traidor: por diversas vezes ele conseguiu salvar vários de seus
companheiros alemães. Em uma das ocasiões, Hasel ajudou um judeu que
havia sido alvejado, mas havia sobrevivido, quando seu tenente,
Gutschalk, matou-o na sua frente e ameaçou Hasel.
Hasel salvou o batalhão inteiro de um ataque de tanques russos, avisando-os a tempo de fugir e levando-os a um lugar seguro; queimou documentos secretos que estava sob sua responsabilidade e confiança e nunca entregou informações ao inimigos. Por esses e vários outros motivos, não podemos considerá-lo um traidor.
Hasel salvou o batalhão inteiro de um ataque de tanques russos, avisando-os a tempo de fugir e levando-os a um lugar seguro; queimou documentos secretos que estava sob sua responsabilidade e confiança e nunca entregou informações ao inimigos. Por esses e vários outros motivos, não podemos considerá-lo um traidor.
Capa do livro "Mil cairão ao teu lado", versão em Português da vida de Hasel e sua família, contada por sua filha mais nova, Susi. |
O fim da guerra e o retorno
Ao
final da guerra, em 1945, quando o sonho nazista havia acabado, Hasel
retornou à Frankfurt em esperança de encontrar sua família. Da unidade
dele, composta de 1200 homens, apenas 7 soldados sobreviveram. Desses
sete, três não sofreram nenhum ferimento de guerra, e Hasel era um
deles. As tropas aliadas faziam a rendição e a vistoria das diversas
tropas alemãs desmobilizadas. Aqueles que eram identificados como
membros da SS eram automaticamente detidos. Aqueles que tivessem crimes
denunciados também eram aprisionados. Erich, o sargento de Hasel, foi o
responsável pela rendição da unidade de Pioneiros. Erich, Hasel, Karl e
Willi (amigos de Hasel) não tiveram qualquer problema e foram
reorientados para sua liberdade.
Lutar sem ferir
Hasel
foi um homem valente que não se rendeu ao poder das massas, nem deixou
sua mente sequestrar-se pelo discurso cativante nazista. Sua mulher foi
igualmente valente: mesmo com o medo e o risco de perder o sustento dela
e de seus filhos, ela jamais se submeteu ao Partido Nazista nem cedeu
às chantagens de seus partidários. Durante a Segunda Guerra,
praticamente todas as famílias tinham um membro com ferimentos de
guerra, algum falecido ou uma casa bombardeada. Mas nem Hasel, com
apenas uma arma de madeira, nem sua família, sofreram qualquer ferimento
nem sua casa foi danificada com qualquer bombardeio. Hasel não pode ser
considerado um traidor: foi fiel aos seus irmãos alemães, mas não a um
partido ou uma ideologia do governo; lutou ajudando os mais necessitados
e seguiu seus princípios mesmo quando parecia ilógico segui-los.
Hasel, depois da guerra, atuou como missionário, até sua morte, aos 92 anos. |
A família é tudo
Franz
trabalhou como missionário até aos 92 anos de idade, quando veio a
falecer. Ele leu a Bíblia 89 vezes durante sua vida. Helene, sua esposa,
morreu aos 82 anos com artrite reumatoide. Durante os últimos 20 anos
de sua vida, ela escreveu mais de 2000 poemas. Sobre os filhos do casal:
Kurt tornou-se pastor e horticultor, casou-se com Berbel e teve três
filhos com ela (Jutta, Bettina e Frank); Lotte casou com um militar
norte americano, William, e foi morar nos EUA, e tiveram dois filhos,
Tedd e Susan; Gerhard tornou-se professor universitário nos EUA, e
escreveu mais de 300 artigos acadêmicos, especializado em História
Antiga, morreu em 1994, num acidente de carro, deixou três filhos com
sua esposa Hilde (Melissa, Marçema e Michael); Susi, a filha mais nova,
casou-se com Bill e concluiu um mestrado em Psicologia Clínica, e teve dois filhos, Marcus e Rico.