Soldados negros que lutaram ao lado dos americanos na Primeira Guerra, que posteriormente receberam condecorações do governo francês |
A primeira postagem da série sobre a questão racial na Segunda Guerra Mundial trata dos franceses e sua política imperial de colonização, e o modo como lidavam com as tropas coloniais. Quando o assunto é o racialismo da Segunda Grande Guerra, nos lembramos apenas dos alemães e sua ideologia de superioridade racial. Entretanto, a questão da raça está presente em todas as potências mundiais, alterando apenas a forma como se manifesta. A política muda de Estado para Estado, mas a base é essencialmente a mesma: povos superiores com a missão de se sobressair sobre as demais "raças" ou "povos".
Soldados coloniais franceses capturados pelos alemães na Segunda Guerra |
Tirailleurs Senegales
O uso de tropas coloniais por parte da França remonta ao ano de 1857, com registros mais oficiais, mas o uso de milícias locais à serviço da Coroa Francesa é bem anterior a essa data. Louis Faidherbe, nesse mesmo ano, criou os regimentos conhecidos como Tirailleurs Senegales, compostos de escravos comprados pelo governo francês e colocados à disposição do Exército. Estes soldados provinham das camadas sociais mais baixas e muitas vezes não recebiam o próprio pagamento. Faidherbe desejava, com essas tropas, obter desempenhos melhores do que as tropas francesas oriundas da Metrópole, pois os europeus não estavam adaptados ao tipo de clima e às doenças africanas.
Tirailleurs à serviço da França, combatendo na Argélia |
O Rachat
Os franceses inicialmente aliciavam suas tropas coloniais comprando escravos e treinando-os como soldados. Em 1882, este sistema de trocas, conhecido como rachat, foi modificado e a entrada de prisioneiros de guerra e outros membros marginalizados foi ampliada. Mercenários também prestavam seus serviços aos franceses. Muitas vezes, essa situação era obrigatória, e a brutalidade dos oficiais franceses era notória.
Soldado africano em uma foto, com uma criança provavelmente francesa |
Os africanos na Primeira Guerra
Estima-se que, somente entre 1914 e 1918, mais de 220.000 soldados africanos serviram à França nos teatros operacionais da África e da Europa. Participaram de batalhas importantes no teatro europeu, como a do rio Yser e a batalha do Somme. Dezessete batalhões de tirailleurs foram criados nesta época. Na batalha do rio Yser, estima-se que de cada quatro soldados africanos, três foram abatidos.
Cartaz alemão da Primeira Guerra, colocando a caricatura satírica de um general francês, dos soldados coloniais negros e de um judeu. |
O abatedouro
Dos cerca de 220.000 soldados africanos recrutados apenas durante a Primeira Guerra, 163.000 participaram do teatro de operações na Europa. Cerca de 30.000 deles perderam suas vidas. A proporção era de praticamente 185 soldados mortos dentre cada mil, uma taxa um pouco inferior à dos franceses das metrópoles (200 mortos para cada mil, em média). Entretanto, proporcionalmente, os africanos sofriam mais baixas do que os franceses.
Soldados coloniais franceses da Primeira Guerra |
Viva a França!
Estima-se que cerca de metade dos efetivos franceses na Segunda Guerra eram compostos de soldados aliciados das colônias, sobretudo os países africanos de Marrocos, Argélia e Senegal. Muitos dos regimentos oriundos da Primeira Guerra ofereceram soldados à França. A maior parte destes efetivos, entretanto, foi desmobilizada ainda no início da Segunda Guerra pelas tropas do Eixo.
Liberdade, Igualdade e Fraude
Os soldados das colônias francesas recebiam tratamento completamente diferenciado. Os salários eram essencialmente mais baixos do que aqueles pagos aos soldados nativos da França. Castigos severos não eram incomuns. A própria origem de escravidão destas tropas e o modelo senhorial desenvolvido pelos oficiais franceses expunha a situação indigna à qual os negros das tropas francesas eram expostos. Sobretudo, eles eram enviados para morrer no lugar dos franceses. Diversas missões insustentáveis foram levadas à cabo pelos soldados africanos que morriam aos milhares. Muitos deles rendiam-se voluntariamente aos alemães.
Tropas coloniais francesas da Nigéria, capturadas pelos alemães em Junho de 1940. |
Superioridade
Os franceses não desenvolveram a questão puramente racial como os alemães o fizeram. Seu racismo, entretanto, foi mascarado sob ideologias iluministas e progressistas. A França era considerada "superior" pelo pensamento chauvinista e provinciano de seus intelectuais e dos membros de seu governo, que a consideravam como o melhor centro da cultura, das ciências e do conhecimento na época, chegando a desdenhar dos demais países europeus, inclusive. Para o francês desta mentalidade, o alemão era um bárbaro a ser destruído e as tropas negras eram apenas a munição para esse fim. A questão da cultura, das belas artes e do "avanço civilizacional" mascaravam os ideais de supremacia racial dos franceses.
Soldados alemães confraternizam com um soldado africano das tropas francesas. |
Contra-propaganda
Durante as duas grandes guerras, os alemães exploraram o uso de tropas coloniais para satirizar seus inimigos franceses. Debochavam dos "defensores da civilização" que em suas fileiras aceitavam escravos e negros que nada tinham a ver com toda aquela "bela cultura". Sátiras foram produzidas e distribuídas para criar a imagem do soldado colonial negro como inferior em combate. Esta propaganda de ridicularização racial foi largamente empregada por todas as potências europeias nas duas grandes guerras e nos combates coloniais, com o objetivo de inferiorizar os inimigos. Entretanto, os negros se mostraram combatentes ferozes e destemidos e seu papel foi essencial para as nações da Europa.
Soldado senegalês das tropas coloniais francesas |
Dinheiro e política
O recrutamento de soldados africanos foi, durante muitas décadas, um negócio lucrativo para os franceses. As tropas compostas por escravos e ex-escravos saíam muito mais baratas do que as tropas convencionais. Além disso, o uso massivo de tropas coloniais tinha uma finalidade também política e de dominação: enquanto estivessem ocupados com as guerras da França, os negros não teriam tempo nem condições de lutar por suas próprias demandas, por suas próprias bandeiras e isso acabava sufocando as possibilidades de uma revolta nas colônias. Apesar dos péssimos tratamentos, eram raros os casos de motins entre os soldados africanos (ou eram menos frequentes) e não raramente eles eram usados para suprir os soldados franceses.
Soldado do Chade, à serviço da França |
O bom selvagem
O racismo francês, chauvinista e econômico, é mais bem disfarçado do que o racialismo alemão mais direto, objetivo e transparente. A França legitimou suas políticas racialistas por ser ela a "protetora da alta cultura" com a missão de levar o progresso aos povos mais atrasados. Entretanto, esta "bondade" francesa não surtiu efeitos positivos para os povos negros. As colônias francesas mergulharam na rebelião, na catástrofe social e na situação deplorável de abandono e miséria. Os soldados negros sempre foram tratados de forma inferior, como segunda classe, dentro das fileiras da França. A dominação econômica foi a maior ferramenta para este racismo velado que é pouco comentado mesmo entre os maiores círculos de estudiosos.
Soldados coloniais franceses capturados pelos alemães, na Segunda Guerra |
Sangue oculto
A França utilizava as tropas coloniais para compensar suas debilidades militares internas. As tropas massivas de negros das colônias serviam como munição contra os adversários em situações extremas. Muitas vezes, estes soldados não recebiam preparação e suprimentos adequados, sendo entregues à morte. As milhares de vidas ceifadas dos soldados das colônias demonstram que o caráter francês nas duas grandes guerras era o de utilizar seres considerados culturalmente inferiores para a defesa da grande "pátria cultural". O soldado negro era, assim, a massa usada como escudo e a situação insustentável foi motivo de revoltas que puseram a colonização francesa em xeque, como a argelina.
Soldado das tropas coloniais com suas condecorações. Alguns deles alcançaram certo prestígio dentro do Exército francês, apesar do tratamento inferior que recebiam |
Grandes heróis
Os soldados africanos das tropas coloniais mostraram grande bravura. Foram essenciais para várias das vitórias da França. Infelizmente, o reconhecimento dado a eles foi pouco. Os grandes contingentes não foram aproveitados como poderiam, e a vantagem numérica e colonial da França serviu pouco diante do despreparo técnico e militar dos comandantes franceses perante os alemães. Vários soldados das colônias foram condecorados e diversos oficiais franceses dispensaram um tratamento mais humano e digno aos seus subordinados das colônias. Com a derrota na Segunda Guerra, entretanto, a França enxerga um lento mas contínuo declínio em sua dominação na África.